Wednesday, April 22, 2009

“E quando tudo parou, não neguei um suspiro.”

Eu, dentro do carro, estacionada em frente à faculdade, comia distraidamente uma banana. Chovia. Eu brincava com as gotas de chuva que caiam no vidro. Imaginava qual delas chegaria primeiro ao final dele. Olhava as coisas passando, as pessoas, os pássaros, e um grupo de três policiais militares de braços cruzados na beirada da calçada que levava à entrada da universidade. Nesse momento, no canto esquerdo do vidro da frente do carro, à minha esquerda para ser mais exata, surgiu um rapaz. Ele tinha um casaco xadrez bege amarrado á cintura, cabelos cacheados e meio emaranhados, usava um short, tênis branco sujo e meias um pouco abaixo da canela.
Não sei o que houve, mas não consegui mais tirar os olhos dele. Parei de comer a minha banana e esqueci de mastigar o pedaço que estava em minha boca. Ele andava leve, indiferente aos impertinentes pequenos pingos de chuva que caiam. Eu passei a observar cada passo, cada sutil movimento seu, como um filme em câmera lenta. Nessa sua sutil leveza, o vi tirando uma gaita do bolso. Ainda nessa leveza, levou a gaita à boca, envolveu-a com as duas mãos em formato de concha e resumiu todo aquele momento em firmes, ao mesmo tempo em que suaves, notas musicais.
Naquele instante tudo mais parou, a única coisa que se movimentava era o rapaz, atravessando o espaço delimitado pelo vidro da frente do meu carro como se fosse a moldura de um quadro. A música servia de tinta. Já nem me lembrava mais que, alguns segundos atrás, comia esfomeadamente uma banana. Os policiais, que antes se ocupavam em murmurar entre si alguma fofoca, algum comentário para passar o tempo, calaram-se ao mesmo instante. Com os olhos, perseguiram aquele rapaz, como que o culpando por causar uma paz instantânea e sublime para aquele local, como que dizendo : “saia daqui rapaz, sem a desordem não temos trabalho. Se você ficar aí distraindo as pessoas com essa música, não teremos a quem prender, e seremos demitidos”. Eles o analisaram de cima abaixo, procurando qualquer sinal que fosse o suficiente para prendê-lo. A sua roupa meio desalinhada, seu cabelo despenteado, seu olhar displicente ou sua leveza momentaneamente sobre-humana, qualquer coisa que eles pudessem alegar como infrações à lei. Não encontraram nada. Naquele momento perfeito, nem eles conseguiram achar defeito.
Ele continuou caminhando e tocando, até que sumiu de minha visão. Por todo esse momento, senti-me como um ratinho vitima do flautista de Hamelin, indefesa ao som de sua música. Tentei voltar a ver a sua imagem, nem que fosse no canto do meu olho, ou ouvir as suaves notas de sua gaita, ainda que estivessem quase inaudíveis. Mas não consegui, aquele momento se havia acabado. O quadro pintado no vidro do meu carro, foi lavado pelas gotas de chuva que ainda corriam. Os policiais voltaram a fofocar e eu terminei de mastigar o pedaço de banana que ainda estava em minha boca. Soltei um longo suspiro, tinha esquecido de respirar. Abri a porta do carro de deixei que as gotas me molhassem.

13/11/2006

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